Para onze milhões de brasileiros, a Terra é plana

“A minha única certeza é que eu vou morrer e que a Terra é plana”, diz Ricardo, entrevistado no restaurante de que é dono em São Paulo. Com mesas e cadeiras azuis “como o céu”, o espaço é um dos locais da maior cidade da América Latina onde os “terraplanistas” se reúnem. O sexagenário não revela o seu nome completo e solta uma risada forçada quando é convidado a explicar as suas convicções. Uma reportagem da Agência France Press.

“Hahaha!… Esta risada é a primeira reacção que as pessoas têm quando você fala que é Terraplanista!”, afirmou. “Ficou polémico demais, porque é verdade e há pressões. Porque tem um fundo de verdade, e isso desperta as pessoas”, explicou.

Os muitos milhares que estão convencidos de que a Terra é plana tendem a viver na sombra, um tanto perseguidos, quase paranóicos. Os “terraplanistas” comunicam em grupos fechados do WhatsApp, no Facebook e especialmente no Youtube, onde os seus canais são seguidos por dezenas milhares de pessoas.

No universo digital, o “terraplanista” pode compartilhar as suas convicções, divulgar as suas experiências em física, testar conhecimentos de óptica: a Terra é estacionária e plana. É isso que está escrito no Livro do Génesis, o livro que abre a Bíblia e o Antigo Testamento.

“Nosso movimento cresceu muito a partir dos anos de 2016 e 2017. Hoje, no Brasil, estamos falando de mais de 11 milhões de pessoas que já entendem que a Terra é plana”, diz Anderson Neves, um empresário de 50 anos que se reúne habitualmente com os companheiros de crença no restaurante de Ricardo.

Esse é o número apresentado pelo instituto Datafolha: sete por cento dos brasileiros. Uma comunidade, cujos membros são principalmente homens, em geral crentes – católicos e evangélicos – muitos sem instrução ou estudos superiores.

O movimento tem como pano de fundo o fenómeno das teorias da conspiração, numa era em que  o conhecimento pós-verdade parece ter crescido sem complexos, especialmente nos centros de poder, como em Brasília, onde um discurso anti-intelectual, anti-científico e negacionista em relação ao clima tem vindo a ganhar força.

Anderson Neves exibe um panfleto contra o que dizem ser os três grandes responsáveis pelo equívoco em que a Humanidade tem estado mergulhado desde há mais de cinco séculos: Newton, Darwin e Copérnico.

Ao seu lado, uma maquete em que a Terra é apresentada com a forma achatada de um disco, coberta por uma cúpula transparente onde circulam o Sol e a Lua, representados com igual tamanho.

Os gregos já sabiam há 2.000 anos

“Quando olhamos para o horizonte, quando vamos para uma montanha e tiramos fotos, vemos que (a Terra) é sempre plana e nunca curva como os livros científicos afirmam”, continua Neves, com um régua de nivelação nas mãos.

Para os “terraplanistas”, se a Terra estivesse em movimento, a sua rotação de 1.700 km/h para o Equador faria com que tudo fosse expelido para o espaço. Se fosse esférica, seria possível perceber a curvatura a bordo de um avião.

“Para perceber a curvatura, seria necessário o dobro da altitude de um voo comercial, a 20.000 metros”, explicou à AFP Roberto Costa, astrónomo da Universidade de São Paulo (USP). “Sabe-se que a Terra não é plana, seguramente, desde Galileu, desde o começo do século XVII, mas os gregos já sabiam isso há mais de 2.000 anos”, acrescenta o cientista. “Os argumentos invocados para argumentar que a Terra é plana são muito fracos”, ressalta.

“O pêndulo de Foucault, o nascer do Sol e da Lua são evidências da rotação da Terra”, completou.

Para os cientistas, o terraplanismo” é mais “uma brincadeira, nos parece muito mais uma questão a ser tratada por psicólogos e por sociólogos, porque, para os astrónomos, a forma da Terra não é um problema científico”, assegura

A NASA como alvo

No entanto, a teoria da Terra Plana arrombou os portões do poder no Brasil. O influente guru de Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, um antigo astrólogo, twitou recentemente: “Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute”.

Exilado nos Estados Unidos, onde os “terraplanistas” são numerosos – e onde um deles, “Mad Mike”, morreu no domingo ao tentar voar num foguetão caseiro –  Afonso de Vasconcelos é um caso único. Doutor em geofísica da prestigiada Universidade de São Paulo, Vasconcelos acredita que a Terra é plana. O seu canal no YouTube “Ciência da Verdade” possui 345.000 seguidores.

Também faz sucesso no YouTube Siddhartha Chaibub, um dos organizadores da convenção que reuniu várias centenas de “terraplanistas” brasileiros, a primeira do género, em Novembro de 2019 em São Paulo.

Principal alvo dos conspiracionistas: a Nasa. Para os defensores do terraplanismo, a agência espacial norte-americana manipula as suas imagens de satélite: “O homem nunca chegou na Lua, foi uma montagem”, assegura Ricardo no seu restaurante. E “você já viu a Torre Eiffel de lado em imagens de satélite?”.

Com a régua de nivelação ainda em mãos, Anderson Neves conclui: “Os terraplanistas são os mais inteligentes. Pode escrever!”.

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