Hong Kong. Um mar de negro, entre o receio e a esperança

Entre as centenas de milhar de manifestantes que este domingo saíram à rua na vizinha Região Administrativa Especial de Hong Kong, o descontentamento é palpável. O Governo fez no sábado marcha atrás na intenção de discutir o mais rapidamente possível as emendas à lei da extradição, mas os manifestantes – jovens, na esmagadora maioria – não esquecem a violência com que foram tratados pela polícia na quarta-feira.

Os organizadores do protesto de hoje – a Frente Civil para os Direitos Humanos – convocaram o protesto deste domingo com um único obectivo, o de manter Carrie Lam e o Executivo por ela liderado sob pressão.

“Retire a lei do mal!”. O pregão, repetido até à exaustão pelos manifestantes – vestidos de pretos, o símbolo da paz em destaque – é um sinal evidente que a cedência parcial a que o Executivo assentiu no sábado não tranquiliza ninguém na antiga colónia britânica.

Determinados, os manifestantes fazem o mesmo percurso realizado há uma semana, quando as ruas de Hong Kong transbordaram com uma maré humana da qual não há memória na cidade. O protesto, clamam os organizadores, reuniu um milhão de pessoas. Os números avançadas pela polícia são muito menos expressivos e bem mais inverosímeis.

Este domingo, nova multidão. No entender dos detractores da proposta, as emendas à lei da extradição colocariam a população da antiga colónia britânica – os residentes, mas também os cidadãos estrangeiros que vivem na RAEHK –  à mercê do sistema judiciário da República Popular da China, que vêm como opaco e subordinado ao Partido Comunista. Os receios tornaram-se endémicos e as críticas chegam de todos os quadrantes. A comunidade empresarial, por exemplo, teme que a reforma proposta pelo Governo possa prejudicar a imagem internacional e a capacidade do centro financeiro continuar a atrair investifores e investimentos: “A reacção de Carrie Lam não foi sincera. É por isso que saí à rua em protesto”, explicou Terence Shek, de 39 anos, que se associou à manifestação na companhia dos filhos.

Na quarta-feira, o  território vizinho registou os piores episódios de violência desde que a antiga colónia britânica regressou à soberania britânica, a 1 de Julho de 1997. Milhares de pessoas foram dispersadas pela polícia de choque, que não se coibiu de utilizar gás lacrimogêneo, balas de borracha e munições antimotim para alcançar os objectivos a que se cumpria.

“Polícia de Hong Kong, o vosso dever é proteger-nos, não é atirar contra nós”, dizia o cartaz transportado este domingo por um manifestante.

Flores para Leung

Carrie Lam não abdicou por inteiro de ver discutida a proposta e os manifestantes não perdoam a líder do Governo. Exigem que o Executivo sepulte de uma vez por todas o “diploma maldito”, que o Governo peça desculpa por ter acirrado a polícia contra a população da cidade e fazem questão de tirar o tapete da confiança política a Lam: a chefe do Executivo, dizem, tem de se demitir.

“Essa suspensão da proposta significa que o projecto pode ser reactivado a qualquer momento”, disse o activista Lee Cheuk-yan, citado pela AFP.

Quase 80 pessoas, incluindo 22 agentes das forças de segurança, ficaram feridos na quarta-feira. No sábado, um manifestante – um homem de 35 anos, de apelido Leung – morreu ao cair do topo de um centro comercial onde tinha subido para pendurar uma faixa de protesto em que se lia “Pelo arquivamento da lei da extradição para a China. Não nos estávamos a amotinar. Libertem os estudantes e os feridos”.

Este domingo, depois da polícia da vizinha Região Administrativa Especial ter dito que estava a investigar a morte de Leung na perspectiva de um suicídio, centenas de pessoas fizeram fila para deixar flores e origamis no local da tragédia, para além de mensagens em que o falecido é equiparado a um mártir.

Ai Weiwei, artista e dissidente chinês, não deixou passar em branco a morte do manifestante, com uma publicação no Instagram e o cartoonista Badiucao, crítico de Pequim e do Partido Comunista, homenageou Leung com um elucidativo cartoon publicado no Twitter.

Jimmy Sham, da Frente Cívil para os Direitos Humanos, comparou o projecto a uma “faca” que ameaça Hong Kong: “Quase nos atingiu no coração. Agora o governo diz que não vai avançar, mas também se recusa a retirar o diploma”.

A oposição à proposta de lei é ampla e junta advogados, organizações jurídicas influentes, empresários, câmaras de comércio, jornalistas, activistas, religiosos e diplomatas ocidentais.

Ressentimento amplificado

O movimento de contestação ultrapassa a questão das extradições e espelha um ressentimento muito maior, um quase mal-estar centrado no Governo, tanto no de Hong Kong, como no de Pequim. O processo é um grito de protesto contra o enfraquecimento progressivo das liberdades na vizinha Região Administrativa Especial.

Nos últimos dias, Carrie Lam tem sido uma mulher só. A chefe do Executivo está cada vez mais isolada, depois de deputados do campo pró-Pequim e membros do Conselho Executivo se terem distanciado do texto.

“Apoiamos, respeitamos e entendemos” a decisão de suspender o diploma, declarou o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China depois de Lam ter anunciado a suspensão da proposta. Para Pequim é essencial “restaurar a calma o mais depressa possível” no território.

Os críticos de Lam apontam-lhe o dedo por ter perdido várias oportunidades de se desculpar pelo comportamento da polícia. A chefe do Executivo justificou a acção policial com os alegados actos de violência perpetrados por alguns dos manifestantes. Mas a oposição acusa-a de explorar as atitudes de uma pequena minoria para atacar todos os manifestantes, maioritariamente pacíficos: “Os grupos pró-democracia não se vão ficar por aqui. Querem tirar partido do descontentamento contra Carrie Lam”, explicou à AFP o analista político Willy Lam.

Este domingo, entre outras reivindicações, os manifestantes exigiram que a polícia retire as acusações contra jovens que a polícia rotulou de desordeiros. Os manifestantes temem represálias do governo, disse o activista Lee Cheuk-yan. Querem a garantia de que “o povo, os manifestantes, não vão ser assediados e politicamente perseguidos pelo governo”.

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