Venezuela. Empreendimento chinês fez milhões por entre o caos e a fome

A Venezuela e a República Popular da China assinaram centenas de acordos relativos a projectos concebidos para fomentar o desenvolvimento económico no país da América do Sul, mas apesar de terem sido investidos milhares de milhões de dólares muito pouco se materializou.

Uma unidade de processamento de arroz cuja construção terá custado 200 milhões de dólares norte-americanos ilustra o que a oposição venezuelana diz ser a corrupção e a incompetência do regime liderado por Nicolás Maduro.

O projecto foi concebido para empregar milhares e alimentar milhões. Em Delta Amacuro, um remoto Estado venezuelano entalado entre a Guiana e o Mar das Caraíbas, uma gigante chinesa da construção civil assinou em 2010 um acordo ousado com o então presidente Hugo Chávez. Caracas prontificava-se a abrir os cordões à bolsa e em troca a empresa estatal chinesa seria responsável pela construção de pontes e ligações rodoviárias, de um laboratório agrícola e ainda pela edificação da maior unidade de processamento de arroz da América Latina.

Ao abrigo do memorando, a China CAMC Engineering seria responsável pelo desenvolvimento de plantações de arroz com uma área duas vezes superior à área da ilha nova-iorquina de Manhattan. O projecto criaria empregos para a quase totalidade dos 110 mil habitantes da região do Delta do Orinoco, de acordo com uma cópia do contrato a que a agência Reuters teve acesso.

Amplamente subdesenvolvido, o Estado de Delta Amacaruo era visto como o local ideal para demonstrar o compromisso do Governo socialista da Venezuela com a prerrogativa do empoderamento dos pobres e o acordo serviria para mostrar como Chávez e seu eventual sucessor, Nicolás Maduro, poderiam contar com a China e com outros aliados para desenvolver outros domínios que não os generosos campos de petróleo venezuelanos: “Potência arrozeira! Potência agrícola!”, twitou Chávez à época.

Nove anos mais tarde, os habitantes de Tucupita , a região onde os campos e a unidade de processamento de arroz deviam ter sido construída passam fome. O projecto criou poucos empregos e a unidade fabril nunca chegou a ser completa e gera hoje menos de um por cento da produção projectada. As instalações não processaram um único grão de arroz cultivado localmente, de acordo com uma dezena de pessoas envolvidas ou familiarizadas com o empreendimento. Mas a CAMC Engineering e alguns parceiros venezuelanos não deixaram de prosperar.

A Venezuela pagou pelo menos 100 milhões de dólares à CAMC Engineering pelas obras conduzidas, de acordo com contratos de projecto e documentos compilados no âmbito de uma investigação conduzida pelo Ministério Público de Andorra.

Uma equipa de procuradores do pequeno principado europeu recolheu milhares de documentos no âmbito de uma investigação que procurava determinar o grau de envolvimento de um banco local no branqueamento de subornos alegadamente pagos pela empresa chinesa a políticos e responsáveis governamentais com o propósito de garantir que o contrato fosse assinado.  Entre os documentos recolhidos pelo Ministério Público andorrano, e agora revelados pela agência Reuters, estão depoimentos confidenciais, transcrições de escutas e registos bancários.

Em Setembro, um juiz do Supremo Tribunal de Andorra assinou um despacho em que a CAMC Engineering é acusada de ter pago mais de 100 milhões de dólares em subornos a vários intermediários venezuelanos para conseguir a concessão do projecto de Delta Amacuro e de pelo menos quatro outros contratos agrícolas.

No despacho de acusação 12 venezuelanos são indiciados dos crimes de lavagem de dinheiro e de conspiração para lavar dinheiro. Entre os acusados está Diego Salazar, primo de um antigo Ministro do Petróleo da Venezuela que terá viabilizados os contratos. Entre os indiciados está também aquele que era à época o principal representante da estatal Petróleos de Venezuela na República Popular da China.

Do despacho de acusação constam ainda os nomes de 16 pessoas de outras nacionalidades. Quatro outros venezuelanos, entre os quais o actual embaixador da Venezuela em Londres e ex-embaixador em Pequim, estão a ser investigados, de acordo com os documentos a que a agência Reuters teve acesso.

O processo, os nomes dos acusados e a associação com empresas chinesas foram alvo de uma investigação jornalística conduzida pelo El País no ano passado. A partir dos documentos a que a Reuters teve acesso, e que permanecem em segredo judicial em Andorra, a agência reconstituiu a forma como a CAMC e outras empresas chinesas forjaram laços com os acusados. As empresas chinesas terão pago avultadas quantias com o propósito de obter projectos que, na esmagadora maioria, não foram finalizados.

O resultado, de acordo com o Ministério Público de Andorra, foi uma cultura abrangente de subornos, pagos através de contas em paraísos fiscais, por meio da qual intermediários venezuelanos com ligações privilegiadas ao Governo beneficiaram de projectos concebidos para desenvolver regiões negligenciadas do país sul-americano.

De acordo com a agência Reuters, a CAMC foi escolhida para desenvolver pelo menos cinco projectos agrícolas na Venezuela, com um valor global avaliado em três mil milhões de dólares, mas acabou por não levar nenhum a bom porto.

A região de Tucupita situa-se no coração de Delta Amacuro, estado que faz fronteira com a Guiana.

A empresa, de acordo com contratos e documentos a que a Reuters teve acesso, recebeu pelo menos metade dos 200 milhões de dólares relativos ao projecto de desenvolvimento de arrozais em Delta Amacuro  e no mínimo 40 por cento do valor do contrato dos outros quatro empreendimentos, num total combinado de ao menos 1,4 mil milhões de dólares, não tendo concluído os projectos.

Em troco da obtenção dos contratos, a CAMC Engineering terá pago mais de 100 milhões de dólares de taxas aos intermediários. O Ministério Púbico de Andorra sustenta que o montante pago diz respeito a subornos que ajudaram a empresa a garantir os contratos. Ainda assim, nem a CAMC nem nenhum dos seus executivos foram indiciados no despacho de acusação.

Cooperação é para continuar

Sediada em Pequim, a CMAC Engineering disse à agência Reuters em comunicado que os detalhes e afirmações relativas ao caso incluem “um grande número de imprecisões”, mas não entrou em detalhes. A empresa não respondeu aos pedidos feitos pela agência noticiosa para falar com alguns dos gestores da CAMC mencionados nos documentos e a Reuters não conseguiu contactar os executivos de forma independente: “A nossa empresa opera na Venezuela em conformidade com a ideia de integridade e empenha-se em completar os projectos de construção em que está envolvida através do recurso à melhor tecnologia e a boas práticas de administração”, diz a CAMC em comunicado.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros da China diz num comunicado enviado à agência Reuters que as “reportagens” sobre os supostos subornos de empresas chinesas na Venezuela “obviamente distorceram e exageraram factos com segundas intenções”. O Ministério não especificou, no entanto, a que intenções se referia.

A cooperação entre os dois países vai continuar, informa o comunicado, “com base em princípios iguais, mutuamente benéficos e comerciais”.

O Ministério da Informação da Venezuela, responsável pelas comunicações do Governo, e a gigante estatal petrolífera PDVSA, parceira em muitos dos contratos citados no processo legal movido pelo Ministério Público de Andorra, não responderam às questões formuladas pela Reuters.

Não está claro quando é que os acusados poderão ser submetidos a julgamento. Enric Gimenez, advogado de Salazar, o venezuelano que a investigação andorrana diz ter intermediado muitos dos contratos, disse à agência Reuters que seu cliente é inocente das acusações que lhe são dirigidas pelos procurados do principado.

O regime criado por Chávez e actualmente liderado por Nicolás Maduro enfrenta por estes dias a maior vaga de contestação registada até ao momento. Deputados da oposição, com o apoio da maioria das democracias ocidentais, sustentam que a reeleição de Maduro no ano passado foi fraudulenta e que Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, é o líder legítimo do país. Na semana passada, num golpe de Estado fracassado, Guaidó tentou convencer os militares venezuelanos, os pilares do apoio ao governo bolivariano, a romperem com Maduro.

A crise política foi provocada por um colapso económico que desencadeou hiperinflação, desemprego em massa e um êxodo de milhares de cidadãos venezuelanos. O país sofre com a escassez constante de alimentos, água e energia, bens de primeira necessidade que projectos como o de Delta Amacuro prometiam facultar. As carências graves e os projectos nunca concluídos, alega a oposição, ilustram como a corrupção e o capitalismo de compadrio contribuíram para empobrecer uma nação antes próspera.

Depois de um acordo ambicioso assinado entre Pequim e Caracas em 2007, várias empresas chinesas foram anunciadas como parceiras em projectos de construção de infra-estruturas e de outros tipos no montante de milhares de milhões de dólares. Desde então, a República Popular da China investiu mais de 50 mil milhões de dólares na Venezuela, a maior parte na forma de acordos de empréstimos a troco de petróleo, como revelam números do Governo.

Num discurso feito em 2017, Maduro disse que 790 projectos com empresas chinesas foram assinados em sectores que vão do petróleo à habitação e às telecomunicações. Destes, afirmou, 495 foram concluídos. Alguns empreendimentos foram abandonados por causa de práticas de corrupção, disseram fontes abordadas pela Reuters. Outros foram inviabilizados pela incompetência e por falta de fiscalização.

Em Delta Amacuro, até os responsáveis governamentais reconhecem que foi uma mistura de ambos que arruinou o projecto arrozeiro: “O governo abandonou a obra”, diz Victor Meza, coordenador estadual da agência de desenvolvimento rural da Venezuela, que trabalhou com a CAMC Engineering. “Do que se fez, muito acabou por se perder e muito acabou por ser roubado.”

Durante uma visita recente da agência Reuters a Delta Amacuro, a unidade de processamento de arroz que devia ser construída pela CAMC continuava incompleta. Só um dos 10 silos, cheio pela metade, continha cereais. Algumas máquinas estavam em funcionamento, mas processavam arroz importado do Brasil. Os arrozais estavam ao abandono, o laboratório incompleto, as estradas e pontes continuavam por construir.

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