Uma goleada contra a incompetência

Quatro séculos e meio não são dois dias, por muito que as religiões e a geologia nos procurem convencer que não somos mais do que um insignificante grão de areia na descomunal engrenagem do tempo. Quatrocentos e cinquenta anos de interacção continuada, o mais das vezes de uma incómoda e continua tolerância, haviam de deixar marca no carácter dos chineses da margem direita do Rio da Pérola, pois claro. Se mais não for, a feição indelével de tal presença reflecte-se na candura com que se subjugam às escolhas e às decisões de uma elite inepta, conservadora, pouco ambiciosa e nada solidária.

Em Portugal, os que souberem ler nas entrelinhas da história, encontram uma mensagem que se repete ad infinitum, como se a história da mais imutável das nações da Europa não tivesse sido mais do que longo solilóquio, um disco riscado que toca e volta a tocar, um refrão murcho em trânsito e em transe,

               “Se queres voar e não tens par

                 Abre as asas, põe-te a andar

                 Vai para outro lado voar”

A incúria a que elites e classes dirigentes votam as expectativas do cidadão comum desde os alvores da nacionalidade contaminou Macau. Os vícios e as misérias, não há quem não o saiba, entranham-se com maior facilidade que as virtudes. Não é de estranhar, por isso, que em Macau impere, uma sufocante cultura política que quando não é de submissão e de “respeitinho”, se traduz por uma anestesiante indiferença: o não ver nada, o não ouvir nada, o não dizer nada é para muitos a única estratégia tangível de sobrevivência no sargaçal de perigos mais ou menos evidentes que se apoderou do panorama social da RAEM.

Não é de estranhar, por isso, que a decisão, tomada pela Associação de Futebol de Macau (AFM), de não disputar a segunda mão da pré-eliminatória de apuramento para a fase de qualificação do Campeonato do Mundo de Futebol se tenha tornado um caso manifestamente político. A audácia e o desassombro com que os jogadores da selecção contestaram a posição oficial embandeirada pela AFM constitui uma das mais relevantes invectivas ao teatro de sombras e de medos que tomou conta da causa e da coisa pública no território. É também um pungente grito de protesto contra a incompetência e o a falta de ambição com que Macau – e o desporto do território, em particular – é gerida.

Que a principal responsável pelo amadorismo e pelo atraso crónico que afecta o futebol em Macau é a entidade que tem, na RAEM, a tutela da modalidade não é segredo nenhum. Basta assistir a um encontro de um dos principais campeonatos do território para se perceber que não há clube – não há, porventura, jogador – que não tenha feito chegar ao organismo dirigido por Chong Coc Veng uma ou outra sugestão de como o panorama do futebol no território poderia  ser melhorado. Do alto da sua torre de indiferença, a Associação de Futebol de Macau ignora opiniões, conselhos e palpites, omite responsabilidades (o Sport Lisboa e Benfica de Macau que o diga) e decide como quer e bem entende, mesmo que o mais das vezes as decisões que toma se encontrem feridas de bom senso e se prefigurem como contrárias aos próprios interesses da população do território.

No microcosmos das relações de poder em Macau, a Associação de Futebol é como que um espelho cristalino onde se reflecte com palpável verosimilhança o grau de entropia do sistema político da RAEM: renovação nula, ousadia nenhuma, meio milhão de almas condenadas a um vazio de ambição. Um dia virá em que nem sonhar será permitido.

Com o regresso à soberania chinesa, mudaram-se símbolos, as camisolas ganharam outra cor, os apelidos portugueses quase desapareceram das fileiras da selecção. Ao longo dos anos, duas perspectivas permaneceram inalteradas: os quadros dirigentes da Associação de Futebol e a postura de automumificação a que desde sempre se votaram. Conservadores, inoperantes, desarticulados e desinteressados, em vez de glorificar a modalidade, mataram-na. A águia quis voar? Corta-se-lhe as asas. Uma nova geração de miúdos alimenta o sonho do impossível? Fuzilam-se-lhes as esperanças.

O Governo – talvez parte interessada na alienação de qualquer manifestação de autonomia a que o nome de Macau possa surgir associado, em prol da hodierna lengalenga da integração regional – assiste impávido ao enxovalhar do nome do território não imprensa internacional e não mostra quaisquer sinais de incómodo perante o não cumprimento de compromissos internacionalmente assumidos.

Há um processo de obliteração em curso que vai reduzir o futebol de Macau a um magro esqueleto do que foi outrora e a uma ténue sombra do que poderia ter sido, se uma ou outra pitada de ambição tivessem sido aplicadas na altura certa.

Na hora da morte do futebol de Macau, uma única instância se salva. A rara dignidade com que os jogadores se posicionaram ao longo de todo o processo merece ser ovacionada de pé, merece que um estádio inteiro se erga e cante em uníssono que mais do que jogar, sonhar é mesmo o que é preciso. Obrigado. Fizeram o jogo da vossa vida, rapazes, e a goleada com que colocaram a nu tamanha incompetência tarde ou nunca será esquecida. 

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