“Um dos dramas da actualidade é a globalização da indiferença ao sofrimento alheio”

Fotografia: Correio da Manhã

A globalização da indiferença e a passividade face ao sofrimento dos outros são elementos definidores da contemporaneidade e constituem desafios a que só é possível dar resposta através de uma aposta renovada nos ideais da fraternidade. O trabalho desenvolvido pela Santa Casa da Misericórdia de Macau ao longo dos últimos quatro séculos e meio é visto pelo Padre Vítor Melícias como o exemplo perfeito do espírito de unidade que é necessário cultivar para construir uma sociedade mais solidária e mais compreensiva. O presidente honorário da Confederação Internacional das Misericórdias está convicto que a experiência adquirida pela Santa Casa da Misericórdia ao longo de 450 anos pode ser de grande utilidade à República Popular da China.

A Santa Casa da Misericórdia de Macau assinalou na semana passada 450 anos. Uma efeméride improvável numa cidade dada a improbabilidades. No entanto, mais do que olhar para o passado, o XII Congresso Internacional das Misericórdias serviu para projectar o futuro … 

Vítor Melícias: Uma Misericórdia que tem esta história e que tem esta inserção cultural no meio de um povo com tantas tradições, habituado a olhar para o futuro e a construir o seu futuro, adaptando-se, designadamente, às várias mudanças que a história lhe apresenta, é uma Misericórdia, um tempo e um povo que valorizam e apostam no futuro. Este Congresso realizou-se também com essa intenção: a de aprendermos como é que se consegue na Ásia – onde houve tantas Misericórdias que depois se extinguiram – vir e permanecer. E, sobretudo, permanecer com tanta capacidade e com uma actividade tão adequada aos tempos modernos. Por isso mesmo, nós estamos aqui a partilhar experiências, preocupações. Estamos, seguramente, todos nós a encontrar fundamento para uma escolha e para opções de um futuro que possa corresponder aquilo que são as necessidades das populações. Eu julgo que este momento é um momento de benção. Este momento é, seguramente, também um momento de desafio, mas o exemplo de Macau é para nós um exemplo que nos fortalece. É um exemplo que nos dá a garantia de que é possível subsistir, é possível encontrar soluções novas, é possível acreditar que, por fraternidade, o Homem todo e em todas as circunstâncias pode ser tratado como um irmão.

Esse conceito de fraternidade é um conceito que sublinhou várias vezes na intervenção que fez na abertura do Congresso. As Misericórdias ainda têm uma raiz obviamente católica, mas este elemento deixou há muito de ser um elemento definidor da sua natureza …

V.M: Exactamente. Não podemos nem devemos ser alheios ao sofrimento dos outros. O Papa Francisco ainda há pouco tempo disse que um dos dramas da actualidade é exactamente a globalização da indiferença perante o sofrimento alheio. As Misericórdias surgiram há mais de quinhentos anos – em Itália surgiram  há setecentos – precisamente como uma reacção à indiferença, com o propósito de motivar as pessoas para que elas pudessem, perante o sofrimento humano, não ficar alheias, não ficar distantes. Por isso, hoje  torna-se, se calhar cada vez mais urgente que, com o individualismo que há, com os tipos de conflitos, com a marginalização das pessoas – e as pessoas são cada vez mais descartadas, como também diz o papa Francisco – é necessário que este espírito de nos unirmos por causa da fraternidade e da sensibilidade ao sofrimento dos outros, motive uma actuação. Isto não deve acontecer só por motivação religiosa porque pode-se fazer em regime de filantropia, como se faz no Brasil; pode fazer-se em instituições religiosas, como é o caso de Portugal, mas em que podem participar pessoas não religiosas. Em Portugal, qualquer pessoa, de qualquer crença, pode participar, desde que respeite os princípios cristãos do compromisso, mas não é uma coisa só da Igreja e para a Igreja. Aliás, eu tenho um episódio muito interessante: um dia que foi lançado o projecto de uma Misericórdia numa localidade portuguesa chamada Benedita, tornou-se conhecida a minha presença lá e na rua houve um cidadão que me abordou e disse: “Ó Padre, essa coisa da Misericórdia é uma coisa lá da Igreja, não é?”. E eu disse: “Olhe que não. É uma coisa do vosso povo”. “Aí é? Então também quero ser?”. As pessoas não têm que ser necessariamente crentes ou não crentes. Mesmo um Provedor ou um director da Misericórdia não necessita de ser santo nenhum, nem tem que ir muitas vezes à Missa. Tem que saber gerir a solidariedade com sentido de fraternidade. 

Nesse sentido, esta secular Misericórdia de Macau pode ser uma espécie de lança avançada para a China? A China depara-se exactamente com os mesmo problemas com que Portugal se depara. Um deles é o envelhecimento da população, problema que é um dos maiores desafios com que, não apenas os estados, mas também as próprias Misericórdias se deparam. Está experiência multi-secular das Misericórdias pode ser útil à China?

V.M: Seguramente. A própria Misericórdia de Macau teve uma evolução. Começou por ser um hospital, “aberto ao mar”, como eles diziam naquele tempo. Era, portanto, um hospital aberto a todos aqueles que dele necessitassem, cristãos ou não cristãos, como dizia D. Melchior Carneiro. É uma experiência de Misericórdia que soube adaptar-se, através dos tempos, às necessidades maiores. Ou era a doença ou eram os filhos abandonados ou os pobres. Hoje, um dos dramas que a humanidade tem é exactamente este. Se calhar não é tanto a infância ou a escolaridade da juventude, mas é o envelhecimento das pessoas e o prolongamento da vida em condições de saúde mais difíceis. Portanto, tudo aquilo que é a história das Misericórdias no mundo – em Portugal, no Brasil e mesmo em Macau – é a história de estarmos atentos ao que é mais necessitado. Como a China é um país enorme, com uma enorme capacidade e com uma quase explosão de desenvolvimento e de progresso, ela mesma estará atenta a quais são as primeiras necessidades. Utilizar instrumentos da sociedade civil, sejam estes ou outros, é certamente o caminho.

O envelhecimento é um dos desafios que as Misericórdias de todo o mundo enfrentam. Quais são os outros?

V.M: É o desafio da saúde. É o desafio das chamadas demências, que resultam do envelhecimento e que são cada vez mais evidentes: Alzheimer e Parkinson e outras doenças e depois, efectivamente, a pobreza marginal. Depende também dos países. Uma coisa é o Brasil, outra é Portugal e outra é a República Popular da China, mas são três situações em que se impõe a disponibilidade das Misericórdias para que possam realizar obra.

As Misericórdias afirmaram-se sempre como um complemento à acção do Estado e à acção dos Governos. São-no cada vez mais? Continuam a ser um parceiro importante? 

V.M: É absolutamente necessário que sejam parceiros: a sociedade civil parceira do Estado e o Estado parceiro da sociedade civil. São acções de colaboração. Ninguém pode, sozinho, resolver os problemas da Humanidade. Cada um com as suas capacidades, cada um com as suas funções deve desenvolver essa actividade em cooperação leal e responsável. Ninguém pode estar a fazer concorrência a quem quer que seja, seja o Estado à sociedade civil ou a sociedade civil ao Estado. Seria uma loucura. Não é um problema de concorrência. É um problema, sim, de corrermos todos para os mesmos objectivos e darmos as mãos para os conseguir realizar o melhor possível.

N.B: Esta entrevista foi publicada em primeira mão no suplemento em língua inglesa do semanário católico “O Clarim”.

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