Son My, para os vietnamitas. My Lay para os norte-americanos. O mais atroz dos massacres da Guerra do Vietname aconteceu há meio século. Na quinta-feira a matança foi assinalada numa cerimónia que reuniu vítimas e antigos combatentes de um dos mais sanguinários conflitos da segunda metade do século XX.
As memórias que Pham Thanh Cong guarda do dia em que a sua família foi completamente dizimada chegam-lhe aos estilhaços, como se em My Lai – palco de uma das páginas mais negras da Guerra do Vietname – a manhã continuasse rasgada pela gargalhada mecânica das metralhadoras. Na quinta-feira, cinquenta anos volvidos sobre o fatídico 16 de Março de 1968, Pham recordou o drama ao lado de veteranos de guerra norte-americanos.
No total, 504 aldeões – a mais parte mulheres, crianças e idosos – foram mortos naquela que ficou para a história como a mais inenarrável das atrocidades de um conflito descomunalmente atroz. A maior parte das vítimas do massacre foram abatidas a curta distância, por soldados que seguiam a pé. A possibilidade de terem sido confundidas com combatentes vietcong por tropas americanas que seguiam de helicóptero está há muito excluído.
Quando os helicópteros começaram a bombardear os campos de arroz que rodeavam a aldeia, Pham Thanh Cong refugiou-se com a mãe, o irmão e a irmã no abrigo que improvisaram na casa em que moravam. De dentro da estrutura, Pham e a família procuravam perceber o que se passava através dos sons que lhes chegavam. A uma trégua ligeira segue-se uma tempestade de rajadas a curta distância, passos pesados em corrida e o estribilho de uma esfera metálica rolando contra o cimento: os soldados americanos atacam o abrigo à granada e matam todos quantos lá se encontravam. Todos, não. Pham, então com onze anos, sobrevive. O pai encontra-o horas depois combalido e estropiado entre os cadáveres da mãe, do irmão e da irmã.
Os americanos acabavam de responder à ofensiva do Têt, uma operação Vietcong conduzido em plena trégua do Ano Novo Lunar. Washington acabou por controlar a investida, mas a série de ataques coordenados abalou a moral das tropas norte-americanas.
“Assumi a tarefa de proteger a memória do massacre, para que o mundo trenha consciência da brutalidade do exército norte-americano”, explica Pham à AFP, no memorial de guerra construído para lembrar todos quantos perderam a vida a 16 de Março de 1968.
Os nomes das 504 vítimas da investida norte-americana foram gravados na lápide do monumento e continuam a assombras as noites de quem decidiu consagrar a vida à preservação da memória da chacina, na qualidade de director do pequeno espaço museológico construído na aldeia.
“Quando penso muito em tudo o que se passou, não durmo bem à noite. As memórias regressam, a dor, a perda da minha família e da minha infância. Essas recordações, todas elas, deixam-me muito triste”, testemunha Pham. Reformado desde há pouco mais de um ano, o guardião da memória da ignóbil chacina de Son My – localidade designada der My Lai pelos americanos – teme que os gritos e o sangue que viu correr há meio século envelheçam com ele.
“Agora, o mais importante é olhar para o futuro e para o desenvolvimento do país. O passado mora no passado e ninguém quer ficar preso à memória de uma guerra”, assegura Pham Thanh Cong.
Mais de quarenta anos após o fim da guerra, o Vietname aparenta ser um país em paz com o seu pasado: normalizou relações com o antigo inimigo em 1995 e hoje Washington e Hanoi são importantes parceiros comerciais. Na quinta-feira, o Governo comunista assinalou os 50 anos do massacre no local onde foi construído o memorial e convidou veteranos de guerra norte-americanos que combateram no país.
Três milhões de mortos
“Prestamos homenagem ao espírito dos defuntos e rezamos para que nenhum lugar deste mundo tenha que passar pela mesma dor pela qual passou Son My”, é possível ler na placa comemorativa desvendada na passada quinta-feira.
“Ainda sofro com a ideia de que fomos capazes de fazer isto”, suspira Frank Corcoran, um dos veteranos presentes. Durante a guerra, o antigo militar norte-americano esta estacionado na base vizinha de Da Nang.
“O que vimos nesta aldeia foi por completo uma carnificina”, recorda Ronald Haerbele, fotógrafo do exército norte-americano que se deslocou na quinta-feira ao Vietname para assinalar os 50 anos do massacre.
Os instantâneos fotográficos que obteve no local, e que foram publicado na revista Life em 1969, desempenharam um papel importante na mobilização da opinião pública norte-americana contra a guerra.
O massacre chegou às primeiras páginas dos jornais pela mão de Seymour Hersh, um jornalista de investigação norte-americano, mas foram necessários vários anos para que os contornos do massacre se tornassem conhecidos. A chacina é a melhor documentada dos muitos abusos cometidos pelas forças norte-americanas no Vietname.
Meio século após o massacre, e não obstante o conflito ter provocado mais de três milhões de mortos apenas entre a população vietnamita, a memória de My Lay não é mais do que uma turva reminiscência para a maior parte dos residentes do país. Com 93 milhões de habitantes, o Vietname tem uma das sociedades mais jovens do mundo, com mais de metade da população abaixo dos trinta
anos.
Numa região essencialmente agrícola, onde a população sobrevive do que pesca e do que semeia, recordar o passado não é uma prioridade: “A nossa vida é dura. Temos necessidade de muita coisa, há muitas famílias necessitadas”, lamenta Nguyen Ngoc Long, que tinha apenas dois anos quando a chacina mudou para sempre o futuro de Son My.
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