Diário de uma quarentena

Fotografia: Canal Macau/TDM

Antes de regressar a Macau, de visita a familiares , em meados de Novembro, tive de fazer o teste de Covid-19 para poder entrar no avião com destino a Paris. O resultado foi negativo, e assim pude seguir viagem. Atendendo a era pandémica que atravessamos, tive de preencher um papel com perguntas sobre sintomas respiratórios ou contacto com algum paciente infectado pelo vírus, bem como se visitei algum país terceiro ao longo dos últimos 14 dias.

Jorge Sales Marques/Pediatra

Em Paris, em pleno Aeroporto Charles de Gaule, era impressionante o número reduzido de passageiros ; as lojas das grandes marcas estavam pura e simplesmente encerradas. Já no avião que fez a ligação entre Paris e Taipé, na classe económica onde cabiam cerca de 200 pessoas, não estavam mais do que duas dezenas de passageiros. É impressionante o rombo económico a que um pequeno vírus nos subjugou a todos.

Em Taiwan, todos os passageiros em trânsito para Macau, foram guiados por um funcionário para a sala de embarque conjunta com outras pessoas que estavam à espera de seguir para outros destinos . Para uma cidade sem casos de Covid 19 há muitas semanas, estranhei como naquele espaço estavam concentradas tantas pessoas, embora todas elas equipadas com máscara. Mas o distanciamento social não foi cumprido devidamente.

Em Macau, fomos acolhidos pelos funcionários que controlam a entrada de passageiros e depois de preenchermos uma nova leva de papéis com questões relativas ao contacto com o novo coronavírus, fomos conduzidos ao Hospital Conde de S. Januário para o rastreio da Covid 19. Findo este procedimento, fomos guiados para o nosso destino final: o hotel onde iríamos ficar de quarentena. Todo o processo – desde a entrada em Macau até à chegada ao hotel – prolongou-se durante cerca de quatro horas. Por sorte minha, o quarto que me calhou era grande e com vista para Macau. Isto não acontece em todos os passageiros e há relatos de pessoas que ficaram confinadas em espaços mais pequenos e sem qualquer tipo de paisagem que pudesse em certos momentos tranquilizar a mente, já ela confinada a quatro paredes. A paisagem no meu quart , durante a noite tornava-se ainda mais bela e repleta de luz. Fez magia em mim e os meus olhos apesar de estarem quase cerrados com o cansaço acumulado durante tantas horas seguidas de viagem, brilharam intensamente. O meu espírito despertou de alegria por ver o mar e as duas pontes que ligam a Taipa a Macau. É uma sensação  indiscritível! Ao longe ainda conseguia ver parte da ponte mais longa do mundo que liga Zhuhai, Macau e Hongkong.

A partir do momento em que entramos no quarto, oito vezes por dia podemos abrir a porta onde pelo menos conseguimos ver o corredor ou, ocasionalmente, algum funcionário do hotel. A porta é aberta três vezes para as refeições: pequeno almoço as 8 horas , almoço às 12 horas e jantar às 18 horas. A comida é aceitável e temos sempre a hipótese de recorrer ao sistema de take away, caso o aspecto ou sabor da comida não seja agradávl.. Para quem não aprecia comida chinesa ou é selectivo em relação à sua apresentaçã , é uma boa oportunidade para fazer uma dieta forçada e perder alguns quilos. As outras três vezes são para deixar o saco de lixo fora da porta do quarto. A porta é aberta ainda por  duas outras ocasiões para que um funcionário nos meça a temperatura corporal. Das 17 às 19 horas,  familiares ou amigos podem deixar na recepção comida, livros, roupa , entre outras coisas que nos são entregues de imediato pelo pessoal do hotel. É uma boa ocasião para poder apreciar muitas vezes a única refeição decente do dia, nem que seja apenas fruta. Nestes dias, temos mais uma oportunidade de abrir a porta e ver o corredor do nosso piso. Não é verdade que ficamos trancados por fora, muito menos nos é imposta qualquer pulseira electrónico. São boatos que convém ser desmentido.

Também me telefonaram duas vezes por semana da Direcção dos Serviços de Saúde a perguntar se me sentia bem e se tinha febre. Dois dias antes da data prevista para terminar a quarentena, um dos elementos dos Serviços de Saúde, deslocou-se até ao meu quarto sem ali entrar. Fiquei encostado à porta e a técnica com muita perícia, fruto provavelmente de milhares de colheitas já feitas, executou na perfeição a colheita nasofaringea, cujo resultado ditaria a minha liberdade. Felizmente, testou de novo negativo. Sem dúvida que a máquina está bem organizada pelos Serviços de Saúde.

Por algum motivo não há casos positivos nesta região. As coisas são planeadas e executadas quase na perfeição. Durante os 14 dias, a existência de uma cama no quarto, determina de uma forma natural, uma maior tendência para nos deitarmos . Regra geral entramos num estado de sonolência minutos depois e acabamos por adormecer na solidão. Comer e dormir não poderão ser nunca as únicas coisas que fazemos quando estamos em quarentena. Caminhar muito de uma ponta a outra do quarto várias vezes ao dia é sempre uma alternativa ao sedentarismo. Cheguei a fazer dois quilómetros e meio num dia. Vi alguma televisão na primeira semana, quase sempre apenas o telejornal de Macau e o de Portugal. Na semana seguinte começamos a sentir uma maior solidão e procuramos um pouco mais de barulho de fundo . A televisão fica ligada mais vezes , quase sempre pelo mero prazer de ouvir a voz de alguém do outro lado. É uma forma de sobrevivermos ao silêncio. Escrevi artigos de opinião para jornais portugueses e li muitos artigos científicos para me actualizar.

Ficar de quarentena não é fácil. Mesmo se dormirmos 8-9 horas por dia, temos de inventar uma forma de passar as restantes num espaço limitado. Temos de ter um plano diário para podermos sobreviver a um isolamento forçado pelas circunstâncias actuais .

Foi sem dúvida uma experiência interessante estar em quarentena , porque obriga- nos a imaginar e a arranjar soluções imediatas quando em alguns momentos do dia ou da noite, nos sentimos fechados, presos, quase em depressão e com imensa vontade de sairmos pela porta do quarto fora em busca de liberdade e ar fresco. Não consigo imaginar a vida de um prisioneiro privado da sua liberdade e num espaço mais reduzido, durante meses ou anos. O melhor é não chegar a este ponto e cumprir a lei. Nada substitui a nossa liberdade. Ser livre como o vento! Foi tão bom sentir de novo o cheiro típico de Maca , ver a mistura de edifícios novos e velhos espalhadas pela cidade, apreciar esta zona única do mundo onde a cultura oriental e ocidental se cruzam e a população, chinesa na sua grande maioria , nos acolhe e respeita, trabalhando todos em conjunto em prol desta região administrativa especial, contribuindo para o seu progresso social, económico e cultural. Uma zona peculiar do planeta que,  pelo cumprimento dos cidadãos relativamente às medidas sanitárias propostas pelas entidades competentes, está isenta de casos há mais de 200 dia. Macau é um exemplo para o mundo, que nos orgulha a todos. Querer é poder. Sem este trabalho de equipa, esta empatia entre ambas as partes, nada seria possível. Apesar de ter ficado privado da minha liberdade durante 14 dias, foi por uma boa causa. Não contagiei uma ou mais pessoas, mesmo tendo testado negativo, porque numa fase inicial, pode haver falsos negativos. Valeu a pena, como dizia Fernando Pessoa.”

Tudo vale a pena se a alma não for pequena. “Neste momento de pandemia, não podemos ter uma alma pequena! Temos de ser solidários uns com os outros. Todos nós ficamos a ganhar e assim poderemos em conjunto dizer um adeus definitivo ao Covid-19 porque continua a ser uma “entidade non grata“.

De regresso a Portugal semanas depois, a verificação do preenchimento de documentos e confirmação do teste negativo para Covid-19 só se verificou no Aeroporto de Macau. Em Taiwan ficamos todos juntos numa sala durante horas e quando queremos sair para a zona das lojas, somos escoltados por um membro do staff que está permanentemente connosco na respectiva sala de embarque geral .

Em Paris, ao contrário do que sucedia cerca de um mês antes, o Aeroporto estava muito mais movimentado. No meu caso e de muitos portugueses que viajaram de Macau comigo, tivemos de fazer o check in do bilhete apenas em Paris com destino final ou para Lisboa ou para o Porto. Não havia nenhum balcão para fazer este serviço. Tivemos de o fazer numa única máquina, próxima do controlo de bagagem de mão. Sem o bilhete não podíamos entrar para este secto . Fica uma achega para quem viajar em breve nesta mesma rota. Precisam de ter antes o bilhete de embarque. Caso contrário, podem perder imenso tempo para chegar a vossa vez no local de controlo de bagagem e terem de voltar para trás, por não terem o tal bilhete. Ninguém nos pediu o teste de Covid-19 em Paris. E o distanciamento social em França é de um metr . Mas quase ninguém cumpre. Não se entende o porquê desta falta de rigor num país com tantos casos diários …

Já em pleno voo para Portugal , foi-nos entregue um folheto informativo da DGS, desactualizado. Referia distância de 1.5 a 2 metros entre as pessoas e o uso de máscara em espaços fechados. Dois erros para os turistas que chegam a Portugal. Temos de actualizar as informações. Se for esta a nossa intenção de informar correctamente as regras das medidas sanitárias para todos os turistas que visitam Portugal, temos de o fazer com o máxima de correcção, não deixando nunca de actualizar os folhetos informativos .

Qualquer pormenor é importante. Não podemos falhar em pequenos detalhes. Porque quando chegarmos a outras informações mais importantes para a saúde pública, os erros serão mais grosseiros . Nada deixa de ser crucial numa pandemia. Qualquer pequena falha pode destruir todo o trabalho e empenho de muitas pessoas. Um folheto informativo é um guia para o turista sobre as medidas sanitárias aprovadas em Portugal. Se existem erros, têm de ser já corrigidos.

Se andarem sem máscara no espaço aberto, não devem ser multados porque seguiram as instruções da DGS, quando na realidade actual, é aconselhada a sua utilização na vida pública. São pequenas falhas que se juntarmos às outra , já começam a ser erros a mais. Tal como em Paris, também ninguém nos pediu no Porto qualquer resultado do teste de Covid-19. E a maioria de pessoas eram provenientes de França , um país com grande número de casos. Enfim , depois de tantos meses, ainda é triste verificar que as falhas continuam.

Nota editorial: O presente artigo foi escrito no início de Dezembro, antes da variante britânica do novo coronavírus ter ganho terreno e ter levado vários países e regiões do continente asiático a reforçarem as restrições e as medidas de combate à pandemia. Macau respondeu com a decisão de estender o período de quarentena obrigatória para os 21 dias. Taiwan anunciou a decisão de proibir a entrada e o trânsito de cidadãos estrangeiros, o que deixa os residentes estrangeiros da RAEM virtualmente sem possibilidade de viajar para a Europa.

Be the first to comment

Leave a Reply

Your email address will not be published.


*


This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.