“As relações entre os EUA e a China vão permanecer competitivas”

Trump ou Biden.  Um dos dois será responsável por conduzir os destinos da maior economia do mundo durante os próximos quatro anos, mas para Jianwei Wang o desfecho das eleições norte-americanas não vai alterar em muito o actual status quo no que diz respeito às relações entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China. O duelo estratégico entre Washington e Pequim vai manter-se competitivo e uma eventual eleição de Joe Biden pouco mais trará do que previsibilidade à relação entre as duas maiores potências do planeta. Professor jubilado da Universidade de Macau, especialista em Administração Pública, Jianwei Wang não afasta a possibilidade de um conflito entre a China e os Estados Unidos caso Washington pise a linha vermelha do apoio à independência de Taiwan.

Marco Carvalho

As relações entre a China e os Estados Unidos da América nunca estiveram tão tensas desde que os dois países restabeleceram relações diplomáticas na década de 70. Esta é, provavelmente, a mais importante eleição do último meio século nos Estados Unidos. Será que os resultados do escrutínio vão ajudar a mudar o actual status quo entre Pequim e Washington? Ou pelo menos fazer com que a relação entre as duas maiores potências económicas do planeta seja menos tensa?

Jianwei Wang: Este acto eleitoral é muito importante para as relações sino-americanas, mas também para os próprios Estados Unidos. Parece-me que as relações entre a China e os Estados Unidos deterioram-se de forma considerável ao longo dos últimos meses, muito em parte devido à administração Trump, que optou por seguir uma política muito diferente na relação que Washington mantém com a China: uma relação mais confrontativa. É uma relação pautada pelo desejo de conter a influência global da China. A questão é que há muita gente que está convicta que há um consenso entre o Partido Republicano e o Partido Democrata sobre a necessidade de se ser duro com a China. Provavelmente, não creio que devemos esperar uma mudança muito dramática da política norte-americana para com a China se Biden vencer as eleições. Pessoalmente, parece-me que se Biden vencer este escrutínio, poderemos assistir a algumas mudanças na relação entre Washington e Pequim. Acredito que, pelo menos, se vai tornar mais previsível. Biden é um político de carreira. Se olharmos para o seu percurso, podemos inferior que compreende melhor a China do que Donald Trump. De facto, Biden mostrou uma atitude ligeiramente mais positiva para com a China do que o adversário, ainda que em ano de eleições, não se possa dar ao luxo de não ser duro com a China. De qualquer forma, creio que se Biden for eleito, provavelmente vai fazer com que as relações com a China se tornem mais convencionais e mais previsíveis.

Nesse sentido, uma vitória do Partido Democrata pode ser melhor para Pequim que uma vitória do Partido Republicano? Quem acha que é o candidato que melhor serve os interesses da República Popular da China?

J.W: Bem, não sei. Em 2016, bastantes pessoas julgavam que Donald Trump era uma melhor escolha que Hillary Clinton, como sabe. Mesmo entre a população chinesa eram muitos os que julgavam Trump uma melhor opção. Sabiam que Hillary Clinton era mais dura na questão dos Direitos Humanos e em outros aspectos e julgavam que Donald Trump provavelmente não saberia muito sobre a China. Trump era uma homem de negócios e o que se julgava é que, provavelmente, estaria aberto a todo o tipo de negócios. Donald Trump acabou por se revelar, muito provavelmente, o prior presidente no que diz respeito às relações com a China e não é por uma razão específica, é por uma série de razões. O meu palpite – e é o meu palpite porque que não sei o que pensam as autoridades de Pequim – é que os líderes chineses começam a olhar com outros olhos para o panorama das relações luso-chinesas.  Se Donald Trump for reeleito, o mais certo é que continue a promover políticas de hostilidade para com a China e, obviamente, essa opção não ajuda à estabilidade das relações sino-americanas. Provavelmente, por isso, talvez não seja má ideia tentar algo novo.

Antes de Donald Trump ter sido eleito para a Casa Branca, as relações entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China eram caracterizadas por uma abordagem dupla: cooperação/coordenação, por um lado, e competição/conflito, por outro. Os dois países mantinham uma sólida relação comercial que se ressentiu do braço-de-ferro promovido pela administração Trump. Uma administração Democrata vai procurar sanar as diferenças que se postulam a este nível?

J.W: Sim. Parece-me que sim.  Biden e a sua equipa disseram claramente que a guerra comercial promovida por Donald Trump é uma estratégia de auto-destruição: custou aos Estados Unidos da América qualquer coisa como 300 mil empregos. Biden favorece de forma inequívoca o livre comércio; não defende o proteccionismo, não é a favor de uma guerra comercial. Ainda assim, Biden também acredita que a China não foi justa em termos de comércio com os Estados Unidos da América, mas argumenta que os Estados Unidos devem optar por uma abordagem diferente e não por uma guerra comercial. Um conflito comercial não resolve coisa nenhuma. No entanto, até ao momento, Biden ainda não disse nada sobre a possibilidade de remover as tarifas sobre os produtos chineses se for eleito. Não se comprometeu com essa possibilidade. Mas, o meu palpite é que se Biden for eleito, provavelmente esta guerra comercial vai perder magnitude e os dois países vão voltar a negociar no sentido de encontrar um equilíbrio. De qualquer forma, as relações comerciais entre os dois países também vão depender do enquadramento geral das relações entre os Estados Unidos e a China.  Por isso, parece-me que se o enquadramento geral das relações mudar, as relações comerciais também serão afectadas de forma positiva.

E no caso de Macau? Há investimentos norte-americanos muito relevantes no território. Caso as relações entre Pequim e a China se mantenham azedas, Macau pode ressentir-se? As concessionários de jogo com accionistas norte-americanos podem tornar-se peões no duelo estratégico entre as duas maiores potências do planeta?

J.W: Bem, bastantes pessoas discutem a possibilidade de a China poder vir a visar as empresas norte-americanas com investimentos em Macau a título de retaliação caso as relações entre os dois países piores. O que me parece a mim é que estas empresas norte-americanas são grandes no contexto de Macau, mas não são assim tão significativas num contexto mais global. Por outro lado, não me parece que as empresas norte-americanas com interesses no território se tenham envolvido directamente nas políticas hostis com que Trump brindou a China. Ainda assim, se as relações entre os dois países piorar, creio que tudo é possível. As licenças de exploração de jogo destas empresas deverão ser renovadas muito brevemente, não é verdade? A situação pode ser muito diferente se Trump for eleito e as relações entre as duas potências piorarem mais ainda. Por outro lado, parece-me que se Biden for eleito e o âmbito geral das relações começar a melhorar, não me parece que as empresas norte-americanas venham a ser afectadas de forma adversa. Por outro lado, estas empresas são muito importantes para a economia de Macau. É óbvio que se alguém opera em Macau terá que respeitar as leis e regulamentos chineses. Se alguém fizer algo que seja inconsistente com essas leis e regulamentos é óbvio que se pode deparar com problemas. No entanto, e de uma forma geral, parece-me que boas relações entre a China e os Estados Unidos da América é algo bom também para as empresas norte-americanas com interesses em Macau. Estas empresas são influentes. Algumas doaram dinheiro para a campanha e, provavelmente, deveriam fazer um pouco mais para procurar manter as relações entre a China e os Estados Unidos o mais estáveis possível.

Nos anos que precederam a fundação de Hong Kong, Macau era um ponto crucial no âmbito da interacção entre a China e o resto do mundo. Dadas as circunstâncias, Macau pode recuperar este estatuto?

J.W: Creio que Macau pode servir como uma espécie de janela que pode facilitar, até um certo ponto, a comunicação entre a China e os Estados Unidos da América. Parece-me que isso é possível. Um sinal de que Macau pode beneficiar de uma relação privilegiada é o facto de as autoridades norte-americanas terem retirado recentemente as sanções que tinham imposto a um banco em Macau. Se os Estados Unidos tomassem qualquer tipo de acção contra Macau, os interesses económicos norte-americanos no território seriam afectados. Por outro lado, e em comparação com Hong Kong, Macau não é assim tão importante em termos geopolíticos. Até agora as coisas têm corrido bem a Macau. Estas operadoras de jogo parecem interessadas em continuar a investir em Macau. Se as coisas correrem bem, acredito que Macau vai continuar a desempenhar um papel positivo nas relações entre a China e os Estados Unidos da América.

Em termos pessoais, está optimista em relação ao futuro das relações entre Washington e Pequim? Um dos receios prevalecentes é o de eventual conflito armado entre ambos os países…

J.W: Se Trump  for eleito e a administração Trump continuar com este tipo de abordagem em relação à China, acho que o conflito é possível. A opção pelo confronta, uma tentativa de rebaixar a China junto dos outros parceiros internacionais ou de cruzar a linha vermelha que é o apoio à independência de Taiwan ou de tomar possíveis acções militares contra a China no Mar do Sul da China pode colocar os dois países na iminência de um conflito.  Na minha opinião, acho que será uma grande tragédia para os dois países se isso acontecer, se um conflito armado ocorrer entre os dois países. Acho que quem concebe as políticas em Washington, com a administração Trump, está consciente dos custos de um conflito. Querem colocar pressão sobre Pequim no que diz respeito  à questão de Taiwan, mas creio que daí até defenderem um confronto militar com a China é uma questão muito diferente. No que diz respeito às relações com Taiwan, Washington enviou alguns governantes de nomeada a Taiwan, venderam armas a Taiwan e há até quem fale da possibilidade dos Estados Unidos estabelecerem relações diplomáticas com Taipé, de apoiarem a independência de Taiwan, mas até agora ninguém deu um passo nesse sentido

Por exemplo, o secretário de Estado, Mike Pompeo, tinha prevista uma visita a esta parte do mundo em Outubro, para visitar o Japão, a Coreia do Sul e a Mongólia, mas encurtou a viagem e acabou  por voltar para Washington. O que me parece é que os Estados Unidos precisam de colocar a casa em ordem. Se olhar para as expectativas do povo americano, as relações com a China não são a principal preocupação: há o combate à pandemia, a economia, o acesso a cuidados de saúde, as relações racionais, a manutenção da lei e da ordem. Não há muitas pessoas que digam que a China é a sua maior preocupação.

E uma Guerra Fria 2.0? É nesse sentido que as relações sino-americanas poderão evoluir?

J.W:  Bem, as pessoas começam a falar sobre a possibilidade de uma Guerra Fria, uma nova Guerra Fria ou de uma Guerra Fria 2.0 ou algo do género. Bem, depende, antes de mais, da forma alguém define Guerra Fria. A Guerra Fria, basicamente, foi uma espécie de confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética sem que evoluísse para um conflito militar aberto. Por um lado, se equacionarmos a possibilidade de um conflito militar entre a China e os Estados Unidos por causa de Taiwan e do Mar do Sul da China, então é errado olhar para esta questão na perspectiva de uma Guerra Fria. Durante a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, os dois países ficaram totalmente isolados. Havia muito pouco comércio e uma dissociação efectiva. Talvez isso seja algo que algumas pessoas na administração Trump procuraram alcançar, mas como pode ver, é um objectivo muito difícil porque estamos a viver num mundo globalizado, onde é muito difícil prejudicar o inimigo, sem se prejudicar a si próprio. Como lhe dizia há pouco, Biden disse que é contra a guerra comercial, mas não disse nada sobre seguir uma política de dissociação com a China. Dito isso, acho que as relações entre os EUA e a China vão permanecer competitivas. Há um consenso sobre isso do lado dos Estados Unidos da América. E é preciso não esquecer que uma política mais competitiva em relação à China começou, na verdade, com o governo Obama, a chamada estratégia de “Regresso à Ásia”. É aí que começa tudo. Na altura não tínhamos essa percepção, até porque o governo Obama ainda acreditava que uma relação construtiva com a China era muito importante para a estabilidade da região da Ásia-Pacífico. A administração Trump adoptou uma abordagem muito diferente. Mas, se tivermos em conta que na época Joe Biden era o vice-presidente, provavelmente também terá desempenhado o seu próprio papel na definição da estratégia de “Regresso à Ásia”. Ainda assim, acho que se o eleitorado norte-americano optar por Biden, as relações sino-americanas provavelmente estarão em muito melhor forma.

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