Deputada birmanesa desafia Aung San Suu Kyi nas urnas

Uma deputada expulsa do partido de Aung San Suu Kyi, que considera “caótico e autocrático”, vai defrontar a heroína nacional de Myanmar nas próximas eleições. Thet Thet Khine acredita que o país precisa de trabalhar com o Exército, acusado de genocídio, e não contra os militares.

A Liga Nacional para a Democracia (LND), partido de Aung San Suu Kyi actualmente no poder, é um dos favoritos à vitória nas eleições de 8 de Novembro. O acto eleitoral é o segundo a que o país se submete depois de ter deixado para trás décadas de regime militar, mas Thet Thet Khine espera deixar uma marca.

A candidata tem uma trajectória de intervenção social como estudante activista, médica e posteriormente empresária. Em 2015, foi eleita deputada pela LND, a par de Aung San Suu Kyi.

A agora candidata caiu, porém, em desgraça. Expulsa da LND no ano passado – segundo ela, por dizer o que pensa – a agora opositora de 53 anos espera atrair eleitores para o seu novo partido, o Partido Pioneiro do Povo (PPP).

“A LND deixou de ser a solução para o país”, disse Thet Thet à AFP na sua casa em Rangum, uma mansão decorada com colunas e lustres neoclássicos. “A forma como o partido é dirigido é muito caótica e muito autocrática”, considera, afirmando que a lealdade é valorizada em detrimento da capacidade e que existe uma cultura de microgestão e de medo de irritar “A Dama”.

“Uma única pessoa toma todas as decisões”, diz Thet Thet Khine, referindo-se à líder de facto do governo birmanês.

Muitas minorias étnicas estão decepcionadas com a Liga Nacional para a Democracia, mas o partido tem grande apoio nas terras dos bamar, o grupo étnico dominante no Myanmar.

E, para muitos, Suu Kyi incorpora a LND. Ela lidera o governo como conselheira de Estado, tem as rédeas das relações internacionais como ministra dos Negócios Estrangeiros e assumiu também a liderança no combate ao coronavírus no país.

“Via intermédia?”

A família de Thet Thet Khine fez fortuna na indústria dos rubis. Como estudante de medicina, uniu-se ao movimento pró-democracia que varreu o país em 1988, até ser brutalmente reprimido pelos militares.

Os protestos também levaram Aung San Suu Kyi à fama, “tão especial para nós”, lembra ela. Após a repressão, a agora opositora optou pelos negócios, mas voltou à política na transição para a democracia, após o fim do regime militar.

Thet Thet Khine lidera agora o seu próprio partido, numa sociedade  ainda muito patriarcal. Afirma que a liderança é colectiva e que, no PPP a idade média dos candidatos é de 46 anos.

O partido promete mais empregos, melhores salários e menos impostos, embora dê poucos detalhes sobre como uma tal revolução seria financiada. Acolhe nas suas listas o primeiro candidato abertamente gay de Mianmar, um muçulmano e um budista convicto, conhecido pela sua posição islamofóbica: “Poucos políticos entendem verdadeiramente o mundo dos negócios e  isso constitui uma vantagem para ela”, estima Khin Zaw Win, analista de Rangum.

Uma de suas prioridades é preencher a lacuna cada vez maior entre o governo civil e o Exército, muito evidente na relação tensa entre Aung San Suu Kyi e o chefe do Exército, Min Aung Hlaing.

“Se um pai e uma mãe discutem (…) os filhos não sabem o que fazer”, explica Thet Thet Khine, acrescentando que o Exército é “parte da solução” no processo de construção do Estado.

Segundo a Constituição, as Forças Armadas detêm poderes imensos, com três ministérios importantes e um quarto dos assentos no Parlamento, dando-lhes o direito de veto sobre a legislação. Thet Thet Khine oferece, segundo a própria, uma “via intermédia”.

Mas meio século de governo da Junta Militar faz com que muitos suspeitem de Forças Armadas que aprisionaram milhares de pessoas devido às suas ideias, subjugaram minorias étnicas e alimentaram o declínio económico: “Tomaram muitas decisões erradas e cometeram muitos erros de gestão no passado”, reconhece a deputada, que insiste, porém, no facto de a nova geração de soldados se estar a profissionalizar

Repressão aos rohingyas

Aliar-se aos militares pode significar que Thet Thet Khine pode  “perder algum apoio”, prevê Khin Zaw Win, que vê na decisão uma tomada de decisão pragmática: “Qualquer candidato precisa de ter algo em que se apoiar”, explica.

O Exército é acusado de vários abusos contra os direitos humanos ao longo das décadas que passou a combater contra grupos étnicos armados.

Em 2017, os muçulmanos rohingyas denunciaram assassinatos, estupros e incêndios criminosos em operações militares que levaram o país a ser indiciado por genocídio no mais alto tribunal da ONU, um julgamento que Thet Thet Khine considera “desnecessário”.

Os militares “podem ter reagido de forma desproporcional (…) mas não é genocídio, ou limpeza étnica”. Os rohingyas vivem no estado de Rakhine há séculos, mas são vistos como estrangeiros sem direitos.

Os rohingyas “nunca serão nativos”, diz ela, mas reconhece que aqueles, cujas famílias imigraram há mais de três, ou quatro gerações, deveriam ter sido aceitos: “Devem ter cidadania” e não ser alvo de discriminação, acredita.

Praticamente todos os 600.000 rohingyas que restam no Myanmar não terão direitos nas eleições de Novembro, como aconteceu nas últimas eleições organizadas no país.

A situação dos rohingya não é prioritária para a maioria dos partidos, inclusive para o PPP. O partido estará presente em menos de um terço dos distritos eleitorais. Thet Thet Khine contentar-se-ia em obter 5 por cento das cadeiras e reconhece que é um teste para as eleições de 2025, quando Aung San Suu Kyi fará 80 anos.

Suu Kyi “não acredita num plano de sucessão, então, depois de sua era (…) a LND vai à falência de acordo com a terminologia empresarial. Mas acho que ela permanecerá no poder até ao seu último dia”, concluiu a agora opositora.

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