Mascarar a negligência

O argumento de que as máscaras não protegem quem as usa tem sido repetido à exaustão no chamado mundo ocidental, o tal que é avançado e desenvolvido e aparentemente convicto da sua imortalidade.

A constatação até pode ser perfeitamente científica, mas é também silogística e um tanto ou quanto demagógica, na medida em que alguém só sabe que está infectado depois de surgirem sintomas e de terem sido conduzidos testes de despistagem. Estudos conduzidos por investigadores chineses já deram como provada a transmissão do vírus por parte de pacientes assintomáticos ou de quem não apresentava mais do que sintomas ligeiros. Mergulhados na sua pequenez, os especialistas portugueses – mas também de outros recantos da Europa – continuam a ter como referente a gripe A, quando a ameaça é muito mais esdrúxula. Deixem que vos ilustre os riscos do facilitismo de outra forma: quantos de vós ficariam inexoravelmente descansado ao viajar sem máscara no pacato metro de Lisboa se alguém explodisse num arraial de tosse, a dispensar gotículas, chuviscos e perdigotos a torto e a direito? A necessidade da tranquila Europa combater o alarmismo é compreensível, mas declarações com este teor são irresponsáveis e, se servem para alguma coisa, é para branquear a inépcia dos Estados, que não souberam acautelar uma possibilidade que se afigurava tangível: a de uma pandemia global.

Era bom, por exemplo, que alguém perguntasse a António Costa e companhia se os estoques de máscaras foram repostos depois de terem sido vendidos uns largos milhões para Macau há coisa de pouco mais de um mês. Ou será que a cordata Europa estava convicta que este demónio era só coisa da China?

Não é difícil que o caos se instale, se governos e populações continuarem a desvalorizar a ameaça. Na China, mesmo com as medidas draconianas – algumas delas dictatoriais, quand même – tomadas pelo Governo, o vírus continua a dar luta de todas as formas e feitios. Na Europa – tirando a Itália depois de ter a casa a arder e a Suiça de uma forma muito branda – o que se vê é uma tragédia a ser escrita a fuego lento. Se a China foi o tipo que armadilhou a casa com alarmes para evitar ver o reino arrombado, a Europa é o que saca da caçadeira quando o assaltante lhe entra em casa. Em Portugal, por exemplo, não há centros comerciais fechados, não há jogos de futebol cancelados, não há medidas no metro ou nos comboios. Sensatez, pouca ou nenhuma. O problema é que muitas vezes o tiro sai pela culatra. Se as previsões avançadas pelo epidemiologista norte-americano Marc Lipsitch tiverem um fundo de razão, o coronavírus poderá matar até 20 milhões de pessoas. E é triste a constatação, mas se calhar não é de todo desfasado que nos preparemos a todos para a possibilidade de familiares e amigos serem levados na enxurrada.

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