Coronavírus. Luís Estanislau, um português no coração da tempestade

Ruas desertas, transportes parados, prateleiras vazias nos supermercados e mais de onze milhões de pessoas reféns de um surto epidémico que já matou vinte e cinco pacientes e catapultou o nome da cidade para as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. O novo coronavírus transformou Wuhan numa cidade fantasma. Luís Estanislau traça o retrato de uma cidade confinada, onde o receio é palpável a cada esquina.

Marco Carvalho

“A cidade está completamente parada. É incrível ver uma cidade de mais de onze milhões de habitantes ficar deserta da noite para o dia”. O testemunho é de Luís Estanislau, treinador-adjunto do Wuhan Chufengheli que esta quinta-feira foi proibido de sair da capital da província continental de Hubei, depois das autoridades chinesas terem anunciado, na quarta-feira, a decisão de impedir que os mais de onze milhões de residentes abandonem a cidade.

O Governo de Wuhan cancelou voos e ligações ferroviárias para que as pessoas não entrem ou saiam da cidade sem razões específicas e os quatro portugueses que integram a equipa técnica do Wuhan Chufengheli Football Club estão entre os milhares de habitantes da cidade que foram afectados pela decisão: “Esta manhã passámos por uma experiência terrível. Tínhamos voo marcado para sair do país e não conseguimos. Quando percebemos que não conseguíamos sair, tentámos comprar comida, mas foi muito difícil. A maior parte das prateleiras nos supermercados estão vazias”, explicou Luís Estanislau, em declarações a o “Expediente Sínico”. “Como tinha férias marcadas, considero que fui afectado. Penso que colocar a cidade de quarentena é algo que se faz quando já não se tem outra alternativa ou quando já não há controlo sobre a situação. Só me resta aceitar e esperar que tudo se resolva pelo melhor”, assume, resignado, o técnico de futebol de 27 anos.

A decisão tomada pelo Centro de Comando responsável por gizar as estratégias de combate ao misterioso coronavírus visa conter o ritmo de propagação da epidemia e proteger vidas, mas a reacção imediata ao anúncio, feito ao final da tarde de quarta-feira, de que a cidade iria ser colocada integralmente sob quarentena foi uma corrida desenfreada aos supermercados: “O dia de ontem, quando foi anunciado que a cidade iria ser colocada em quarentena, foi o mais crítico. A cidade virou um caos. Houve uma corrida massiva aos supermercados. Muita gente ficou sem acesso à comida que desejava comprar”, adianta Luís Estanislau. “Fui a três supermercados com os meus colegas e só conseguimos arranjar alguma comida porque um amigo nos deu boleia até a um supermercado que fica a cerca de vinte minutos de onde moramos. Esse, como é mais distante, ainda tinha alguma coisa. Comprámos o máximo de comida que conseguimos e os próximos dias serão passados em casa, obrigatoriamente”, complementa o antigo técnico dos Sub-10 do Sporting Clube de Portugal.

A minutos do epicentro

Os primeiros casos do vírus “2019 – nCoV” foram diagnosticados em meados de Dezembro, quando os hospitais da capital da província continental de Wuhan começaram a receber pessoas com uma misteriosa pneumonia de origem viral. Os sintomas da doença são mais intensos do que os de uma gripe e incluem febre, dor, mal-estar geral e dificuldades respiratórias, incluindo falta de ar. Analisados os primeiros casos, as autoridades de saúde de Wuhan aperceberam-se que os infectados tinham uma característica em comum: trabalhavam ou visitavam com frequência o mercado de marisco e carnes de Huanan, não muito longe do edifício onde moram os quatro portugueses do Wuhan Chufengheli Football Club.

As autoridades da República Popular da China ainda não conseguiram apurar a origem exacta da infecção, mas terão sido animais selvagens infectados que se encontravam ilegalmente à venda no mercado de Huanan que transmitiram o vírus a seres humanos. Entre as espécies ali transaccionadas ilegalmente estariam – escreve o jornal South China Morning Post – cães, civetas, lontras, camelos e até koalas e crias de lobo. Luís Estanislau conhece bem o mercado que está no epicentro do surto epidémico, apesar de nunca lá ter entrado: “Passo lá todas as semanas. Fica perto da nossa casa. Mas nunca entrei para comprar nada”, explica o jovem técnico. “O receio de contrair a doença existe, até porque temos amigos que trabalham num dos hospitais e eles fazem questão de nos mostrar que a situação é bem mais grave do que aquela que é reportada nas notícias. Vemos casos de pessoas infectadas nos Estados Unidos, no Japão e na Tailândia e nós vivemos no epicentro da epidemia, a poucos minutos a pé do mercado onde tudo começou”, sublinha Estanislau.

Notícias, rumores e apreensão

A incapacidade para aceder a informação actualizada em primeira mão exponencia a apreensão a que os portugueses da equipa técnica do Wuhan Chufenghelli estão sujeitos. Um dos tradutores do clube está responsável por familiarizá-los com os mais recentes desenvolvimentos e é por ele que chega um alerta que, bem vistas as coisas, até pode não ser mais do que um rumor. A mensagem avisa que os residentes da cidade devem evitar sair à rua entre as 17 e as 21 horas por ser durante esse período que as autoridades transportam pacientes com febre para os hospitais designados. O pequeno texto, escrito em caracteres simplificados, informa ainda que a Força Aérea deverá conduzir várias missões de desinfecção de grande escala, recorrendo a aviões militares para lançar um pó desinfectante sobre a cidade. A iniciativa parece retirada de um “blockbuster” de Hollywood, mas Luís Estanislau diz não duvidar da magnitude do infortúnio que se abateu sobre a cidade: “Acredito que há mais casos do que aqueles que são reportados. O Governo talvez tenha tentado evitar lançar o caos. Mas sabendo que a cidade está fechada, que não é permitida a entrada ou saída de ninguém, podemos presumir que estamos mesmo perante um caso de emergência nacional”, admite o treinador-adjunto do Wuhan Chufenghelli.

A equipa, que disputa o terceiro escalão do futebol chinês, regressou à cidade na quarta-feira depois de ter realizado um estágio de pré-época no sul da China e tem o regresso ao trabalho agendado para a próxima quarta-feira, 29 de Janeiro, mas nada garante que assim seja: “O departamento médico do clube entretanto reuniu todos os jogadores e o staff e esclareceu o grupo de trabalho sobre a natureza do vírus e quais os passos a seguir caso algum de nós apresente sintomas”, adianta o técnico português. “A maior parte dos jogadores regressaram às suas cidades para celebrar o Ano Novo Chinês. Temos planos agendados para dia 29. Não sei como será agora, uma vez que não é permitido que os jogadores regressem à cidade”, remata Luís Estanislau.

As autoridades de saúde da República Popular da China ampliaram esta quinta-feira para mais de seiscentos o número de pessoas infectadas com o novo coronavírus, depois de na quarta-feira terem reportado a morte de 25 dos infectados.

A Comissão Nacional de Saúde da China disse que, até à meia-noite da quarta-feira, tinha contabilizado 571 casos confirmados em 25 províncias e regiões do país. Só na quarta-feira, as autoridades tinham registado 131 novos casos.

Os serviços de saúde  do Continente estão a acompanhar 5.897 pessoas que mantiveram contacto próximo com pacientes infectados e, dessas, 4.928 estão em observação. De acordo com a Comissão Nacional de Saúde da República Popular da China, o período de incubação do vírus pode estender-se até 14 dias.

A Comissão Nacional de Saúde da China tinha já alertado que o novo tipo de coronavírus “pode sofrer mutações e espalhar-se mais facilmente”.

Fora da China continental, foram confirmados casos da doença em Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul, Japão, Tailândia, Estados Unidos da América e Macau, onde esta quinta-feira foi anunciado um segundo caso de contágio.